Séries senegalesas: o país em cena

Lívia Apa

Nasceu em Nápoles. É investigadora, com trabalho na área dos estudos culturais dos países de língua oficial portuguesa. É também tradutora, tendo publicado em italiano, entre outros, Mia Couto, Ondjaki, Ruy Duarte de Carvalho, Mário Cesariny, Ana Luísa Amaral, Ana Paula Tavares. Faz parte da direcção da ACEP. Colabora com a revista "Gli Asini" de Roma.

As imagens são poderosas. Sempre souberam disso governos e criadores em busca de novas estéticas e novas narrativas para contar novos contextos. No continente africano, onde a taxa de analfabetismo sobretudo no momento das independências era altíssima, as imagens em movimento foram um importante instrumento de propaganda e, na mesma medida, um meio para contar as realidades nacionais, como demonstra o nascimento de um cinema capaz de retratar e interpretar o espírito dos novos tempos, suspensos entre a vontade de mudança e a recuperação de valores tradicionais muitas vezes censurados pela presença colonial.

O desaparecimento progressivo das salas de cinemas, as dificuldades de produção local, tanto do ponto de vista técnico, como do ponto de vista económico, não facilitaram a criação de públicos e o cinema foi-se tornando progressivamente um produto de exportação para circuitos internacionais.

Nos últimos 20 anos, começou a surgir um outro tipo de cinema que, abandonando um compromisso mais político e social como aconteceu com as primeiras vagas de realizadores africanos, centrou-se no imaginário popular, criando histórias onde entram dinheiro, sexo, máfias, grigris [1], mortos que ressuscitam. Trata-se de Nollywood, uma indústria de cinema nascida na Nigéria, feita, na altura, à base de cópias (em CD!) mais ou menos piratas de filmes, vendidos nos mercados, exibidos em tudo é que é lugar de convívio, sobretudo nos pequenos restaurantes, nos cabeleireiros, nos bares. Hoje em dia Nollywood é a segunda potência cinematográfica do mundo. Já abandonou a sua faceta marcadamente popular à qual deve a sua repentina e capilar divulgação, tendo-se transformado numa verdadeira indústria que produz filmes de alta qualidade técnica, que tem o seu próprio star system e a sua estética, ligada às classes economicamente emergentes e aos seus sonhos de luxo. Outros países tentaram emular a experiência de Nollywood conseguindo criar sistemas de produção cinematográfica local (Quénia e Tanzânia, por exemplo, e África do Sul, que em parte conseguiu) que abriram caminho para a produção de séries televisivas fortemente ancoradas na realidade local. O caso do Senegal é muito interessante nesse sentido.

No país onde nasceram Ousmane Sembène e Djibril Diop Mambéty, considerados os pais do cinema africano, assistimos ao longo dos anos, ao quase total abandono dos arquivos cinematográficos nacionais e ao progressivo apagamento do “sistema cinema”. Hoje, porém, há uma nova realidade a impor-se no que diz respeito às imagens em movimento, a da produção de séries televisivas, que neste caso, produzidas no Senegal, são vistas em todos os países francófonos e também pela diáspora. Estas séries impuseram-se num mercado dominado pelas produções latino-americanas ou pelas dos Estados Unidos, apostando no retrato da sociedade senegalesa de hoje. O mercado, dominado por duas casas de produção – a Marodi (6 milhões de assinantes no YouTube) e a Evenprod (mais que 3 milhões de assinantes no YouTube) – sonha com a possibilidade de se tornar o principal produtor de séries do continente. Trata-se de um mercado fortemente diferenciado que se impôs através de duas séries, Pod e Marichou e Idoles, mas que ganhou ressonância internacional graças a Maitresse d’ un homme marié. A série baseia-se na história de quatro mulheres, cada uma delas representando uma faceta diferente da condição feminina no Senegal: o casamento forçado, a violação, a violência doméstica e a poligamia. Trata-se de mulheres emancipadas, que trabalham e que tentam lutar cada uma à sua maneira contra os limites impostos por uma sociedade profundamente machista. A atitude descomplexada da protagonista, Mareme, que assume os seus direitos enquanto segunda mulher de um rico empresário, provocou a reação da ONG islâmica Jamra que apresentou queixa ao Conseil National de Regulation Audiovisuelle (CNRA) pedindo a suspensão da série por ultraje à moral pública, sem conseguir, provavelmente devido ao extraordinário sucesso. O mesmo se passou com a série Infideles, cujo fio condutor é a infidelidade conjugal e a infidelidade aos princípios da religião, que passou a ser exibida depois das 22.30 e interdita a menores de 16 anos.

A autora de Maitresse d’un homme marié, Kalista Sy, cuja alcunha no Senegal é Shonda Rimes (autora de Grey’s Anathomy e outras séries de sucesso norte-americanas) afirma que as suas séries não querem ser uma denúncia, ao invés representam processos de consciencialização feminina e, sobretudo, são histórias que retratam a sociedade senegalesa através de um olhar feminino. Kalista Sy espera que possa inspirar outras mulheres para ganharem autoestima e coragem. Cada episódio da série obteve pelo menos dois milhões de visualizações, muitas das quais nos telemóveis, como é possível ler nas interessantíssimas caixas de comentário à série no YouTube, que constituem uma outra narrativa em si, oferecendo também importantes indícios para a definição do público desse tipo de produto audiovisual.

Calcula-se que quase metade dos comentários foram feitos por pessoas que vivem noutros países francófonos ou pela diáspora que tem acesso às séries (em wolof com legendas em francês) no YouTube. Chegaram a ser expostos cartazes gigantes da série não apenas em Dacar, mas também em Paris perto das principais estações rodoviárias. Kalysta Sy foi nomeada, em 2019, pela BBC como uma das 100 mulheres mais influentes do continente pelos resultados obtidos na vida pública e social. Hoje em dia ela tem a sua própria casa de produção, a Kalysta Sy, e continua a promover histórias ligadas à condição feminina, como demonstram as mais recentes séries Yaay 2.0 e Hair Lover .

O mundo das séries é extremamente variado. Existem séries mais politizadas como Wara, exibida na TV5 Monde e também, recentemente, na RTP 2 em Portugal, mas não no Senegal. Fala-nos de um professor engajado e do descontentamento dos seus alunos perante a falta de perspectivas e a corrupção do país ou ainda séries contra a emigração clandestina como Tekki Fii (Conseguir
aqui) ou Gaal Gui. Um caso à parte é o da série Rebelles, cujas filmagens foram interrompidas pela autoridade competente. A série tinha a ver com uma zona politicamente quente do país, a Casamansa, e por essa via pode explicar-se a decisão de pôr fim às filmagens. Noutros casos, as séries são usadas para promover campanhas de informação. Aconteceu durante a pandemia com a série Le Virus, que contava a chegada de um emigrante senegalês a Dacar, vindo de Itália, contribuindo assim para a proliferação do vírus. Ao longo dos episódios (que rondavam os 8 minutos), divulgaram-se informações sobre a doença, tal como boas práticas para o controlo da pandemia e para o combate à desinformação e à discriminação dos doentes. O caso mais interessante deste tipo de série é representando por C’est la vie, que foi emitida pela primeira vez em 2015. A acção desenrola-se numa clínica de Ratanga (jogo de palavras com a palavra teranga que quer dizer hospitalidade em wolof), onde a cada episódio se desenrolam histórias que têm sempre uma finalidade educativa. Promovida pela ONG senegalesa RAES (Reseau Africaine pour l’Education, la Santé e la Citoyanneté) foi transmitida em 44 países africanos, focando importantes questões como a gravidez precoce, a excisão, a educação sexual dos jovens, o planeamento familiar. A primeira série contou com a realização de Moussa Sene Absa, um dos mais importantes realizadores senegaleses da actualidade, e foi emitida em 44 países africanos em francês, houssa, malinke, peul, wolof e inglês. A música e o design de toda a produção é muito cativante, as histórias das personagens e do habitantes do bairro onde se desenvolve a acção são intrigantes e cada emissão é acompanhada por um blogue, onde são focadas as principais questões apresentadas na série. Foi um grande sucesso.

A sustentabilidade destas séries é garantida pela publicidade. O grande sucesso de público ajuda. Recorre-se também (como cada vez mais aqui na Europa…) ao product placement, ou seja, uma personagem aprecia a qualidade de um ou outro produto na cena. O mercado cresce. Neste momento, a casa de produção Marodi, que aspira a ser nos próximos cinco anos uma das maiores casas de produção de média do continente, declara ter capacidade para pôr quatro equipas a trabalhar em simultâneo. Os lucros são divididos entre as casas de produção e os canais de televisão, mas a verdadeira aposta são os canais a pagamento e a publicidade no YouTube, sobretudo para facilitar a expansão do mercado no continente.

Algumas séries começam a ser rodadas também em inglês, já a pensar nos países anglófonos, sonhando em alcançar o colosso nigeriano. Pede-se maior apoio por parte do Estado, já que estas produções exportam o Senegal e a sua cultura no mundo. Muita atenção é prestada também à diáspora que segue com muita curiosidade as histórias dos próprios países de origem, que nem sempre conhecem directamente ou na primeira pessoa.

Não é fácil dizer até que ponto estas séries retratam de forma exaustiva a realidade do país. Parece, porém, que tentam encenar a criação de uma narrativa nacional popular, no sentido em que essa palavra é usada por Karin Barber [2] em relação às produções populares em contexto pós-colonial, quebrando de alguma forma a fronteira entre “cultura alta e cultura baixa”. O que é indiscutível é que essas séries, contra todas as possíveis polémicas e interdições, põem em cena aspectos concretos da realidade do país, expondo alguns dos seus pontos críticos e isso explica o seu sucesso. Há temas quentes, como vimos, que são acompanhados com toda a atenção pelo poder, sobretudo num contexto como o actual em que o desejo de mudança é muito grande. Isto não impede, porém, que nas séries se fale abertamente de corrupção, da hipocrisia social e religiosa, do descontento dos jovens e das suas dificuldades ou que se ridicularize o presidente e a sua esposa, retratada como a verdadeira chefe do governo. A série Decheance, por exemplo fala abertamente do fenómeno da prostituição das jovens estudantes universitárias na capital, criticando o machismo dos cheri-papas que as compram sem escrúpulos, mas há temas, como o da homossexualidade, que continuam a ser autênticos tabus. Vamos ver como a narrativa vai continuar.

 


[1] amuletos

[2] Karin Barber, A History of African Popular Culture, Cambridge University Press, 2017.