Um olhar sobre os profissionais da indústria do desenvolvimento

Katia Taela

É antropóloga feminista, investigadora e consultora, tendo trabalhado com diversas organizações nacionais e internacionais em Moçambique. Doutorada em Estudos de Desenvolvimento, pelo Institute of Development Studies da Universidade de Sussex, na Inglaterra. As suas áreas de investigação incluem histórias de vida de profissionais de desenvolvimento, relações Sul-Sul, práxis feminista e relações sociedade-Estado.

“Apesar da sua diversidade em termos de nacionalidade, classe, ocupação e experiência, os profissionais de desenvolvimento geralmente ocupam uma posição social privilegiada nos países onde trabalham.”

A maioria das análises sobre “Cooperação para o Desenvolvimento”1 concentram-se nas estruturas, políticas, culturas e intervenções das organizações de desenvolvimento, negligenciando os indivíduos envolvidos em fazer a indústria da cooperação funcionar ou então representando-os como simples tecnocratas que operam dentro de normas e práticas institucionalizadas. Quem eles são e quais são os seus valores e visões do mundo parecem ser irrelevantes, a despeito do seu papel na produção e reprodução das políticas e práticas de desenvolvimento. Os profissionais de desenvolvimento são tanto objecto como agentes das políticas “Cooperação para o Desenvolvimento” (Mosse 2005).

Apesar da sua diversidade em termos de nacionalidade, classe, ocupação e experiência, os profissionais de desenvolvimento geralmente ocupam uma posição social privilegiada (classe média-alta) nos países onde trabalham. Estes beneficiam, a nível pessoal e profissional, de um sistema que promove e justifica a sua presença nas organizações de desenvolvimento. O seu privilégio deriva do papel, discursos e práticas da “Cooperação para o Desenvolvimento” construídos através da reconfiguração das relações coloniais, de hierarquias de conhecimento e na construção racionalizada da diferença, em que o Outro aparece como subdesenvolvido, oprimido, limitado e dependente que precisa de ajuda. Este discurso justifica e legitima as motivações para trabalhar na “Cooperação para o Desenvolvimento”.

Fechter (2012) destaca a relação entre os valores dos profissionais de desenvolvimento e a sua prática e defende a necessidade de maior atenção à forma como o pessoal e o profissional se interrelacionam. Segundo a autora, este aspecto foi durante muito tempo negligenciado em larga medida devido à preponderância de uma narrativa sobre o profissional da “Cooperação para o Desenvolvimento” que destaca o altruísmo e autosacrifício. Contudo, esse silêncio dos estudos de desenvolvimento em relação aos profissionais de desenvolvimento limita a nossa compreensão sobre os processos de desenvolvimento (Fechter 2012).

Para além dos profissionais de desenvolvimento do Norte Global

O enfoque da literatura existente (Baaz 2005, Heron 2007, Fechter e Walsh 2010) sobre os profissionais de desenvolvimento do Norte Global2 que vão trabalhar no Sul Global gerou a ideia que questões de identidade, posicionalidade e reflexividade apenas se colocam em relação a estes profissionais3. Esta ideia deriva do facto de a “Cooperação para o Desenvolvimento” ser imaginada como um encontro Norte-Sul; imaginário este reforçado por leituras pós-coloniais assentes na crítica aos legados materiais e discursivos do colonialismo e seus efeitos nas relações entre o Norte Global e o Sul Global, marginalizando as relações Sul-Sul.

“A visibilidade de actores do Sul na ‘Cooperação para o Desenvolvimento’ e o recurso a discursos identitários abriu caminho para colocar novas perguntas sobre o lugar das identidades nas teorias e práticas de desenvolvimento “

Foto: Alain Corbel

Quando discutidas as relações Sul-Sul aparecem como que imbuídas de uma capacidade inata de fomentar práticas descolonizadoras, percepção alimentada por definições oficiais de Cooperação Sul-Sul. Por exemplo, o Gabinete das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul define Cooperação Sul-Sul como ‘um quadro amplo para a colaboração entre países do Sul esfera política, económica, cultural, ambiental e técnica. Esta envolve dois ou mais países em desenvolvimento e pode dar-se numa base bilateral, regional, sub-regional ou inter-regional. Os países em desenvolvimento partilham conhecimento, habilidades, experiência e recursos com vista a alcançar os seus objectivos de desenvolvimento através de esforços concertados’. Esta definição pressupõe que os ‘países do Sul’ são ‘países em desenvolvimento’.

Contudo, vários autores problematizam esta premissa pois estabelece uma divisão Norte-Sul baseada numa dimensão espacial e temporal em que o Sul aparece associado ao subdesenvolvimento económico e/ou social e ao atraso (Caison e Vorman 2014). Esta divisão reflecte ainda uma compreensão homogeneizante da realidade que eclipsa as diferenças entre ‘países em desenvolvimento’ assim como as semelhanças entre países ‘em desenvolvimento’ e ‘desenvolvidos’ dramatizando, desta forma, a distância entre países em desenvolvimento e desenvolvidos e a proximidade entre países em desenvolvimento.

Em contraste com a noção de Cooperação Sul-Sul centrada na ideia de subdesenvolvimento, Lavender e Mignolo adoptam relações Sul-Sul para se referirem a ‘uma rede que deixa o Norte Global de fora intencionalmente’, concentrando-se desta forma em ‘redes globais de-coloniais que se estendem de Sul a Sul’ (2011:09). No entanto, esta definição também é problemática pois não toma em consideração a diversidade de espaços e condições em que tem lugar as relações Sul-Sul nem as desigualdades de poder no seu seio, por exemplo, entre activistas de uma mesma rede global de-colonial. Julgamos importante considerar o alerta feito por Caison e Vorman de ‘resistirmos à tentação de aplicar mecanismos de análise totalizantes a grupos de pessoas consideravelmente diferentes, com vivências específicas dos efeitos da globalização e com diferentes condições de possibilidade emancipatória (2014:68).’ Por isso, entendemos os termos ‘Norte’ e ‘Sul’ como construções sociais que servem propósitos específicos e que estes precisam ser analisados e desconstruídos.

Pesquisas recentes sobre diferentes tipos de relações Sul-Sul que considera tanto o nível micro das interacções interpessoais como o nível macro da geopolítica revelam que apesar da centralidade da identidade (proximidade cultural, passado histórico comum, convívio com a pobreza, e afinidade) nos discursos dos profissionais do Sul Global, o facto de serem do Sul Global, por si, não garantem relações horizontais, aprendizagem mútua e reconhecimento da capacidade do Outro, dado que outras identidades, criadas pela própria indústria da cooperação, intervém nas interacções pessoais e profissionais (Ress 2015, Hatzky 2015, Taela 2017).

Na sua belíssima análise sobre como a retórica oficial acerca da Cooperação Sul-Sul era posta em prática no dia-a-dia da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Ress (2015) mostra que apesar de o objectivo da Unilab ser juntar estudantes e docentes dos países de língua portuguesa para trocarem, produzirem e disseminarem conhecimento juntos, tal não aconteceu porque a implementação privilegiou interpretações, objectivos políticos e valores centrados no Brasil e não reconhecia as capacidades e conhecimentos dos parceiros africanos.

De acordo com Ress (2015) por um lado os discursos dos fundadores da Unilab foram sobre solidariedade, história comum e integração e as relações entre o Brasil e os países africanos eram apresentadas como mutuamente benéficas. Por outro lado, África era imaginada como um Outro ‘subdesenvolvido, um espaço de guerra, doença e caos e as desigualdades socioeconómicas e sociopolíticas da sociedade brasileira contagiavam as dinâmicas na universidade, a tal ponto que esta era percebida pelos estudantes africanos como ‘um espaço de alterização Othering sociocultural e racial e de marginalização económica (2015:210).’

Taela (2017) defende que os discursos de cooperação Sul-Sul reproduzem as hierarquias de conhecimento, sistemas de expertise e formas de autoridade que estruturam a cooperação Norte-Sul (Kothari 2005, Peters 2016), através da criação de novas formas de conhecimento autoritativo4. Esta dinâmica é ilustrada com uma análise das interacções, entre profissionais brasileiros e moçambicanos, dentro e fora do trabalho que mostra a cumplicidade de ambos com a indústria do desenvolvimento, através da reprodução de discursos sobre a relevância das experiências brasileiras e da necessidade de “assistência técnica” em Moçambique.

A análise sublinha que discursos de proximidade, afinidade e semelhança coexistem com discursos sobre desigualdades de poder e hierarquias, ambos articulados através de metáforas de parentesco. Mostra ainda como os discursos de familiaridade e afinidade são destabilizados por conflitos derivados de diferenças nos salários, benefícios e oportunidades entre profissionais brasileiros e moçambicanos e como a autoimagem dos brasileiros como amigáveis é contestado por moçambicanos que se sentem traídos pelo que consideram ser falta de compromisso e investimento na capacitação técnica e crescimento profissional dos moçambicanos.

Os dois trabalhos acima citados são apenas alguns exemplos que mostram como as pessoas do Sul Global são representadas por pessoas do Sul Global, como o poder permeia as suas interacções no quotidiano e os mecanismos que os indivíduos adotam para lidar com tensões. A visibilidade de actores do Sul na “Cooperação para o Desenvolvimento” e o recurso a discursos identitários abriu caminho para colocar novas perguntas sobre o lugar das identidades nas teorias e práticas de desenvolvimento rompendo com a tendência dominante de apenas falar-se nas identidades e estilos de vida das pessoas abrangidas pelas intervenções de desenvolvimento.

Acreditamos que qualquer análise do passado, presente e futuro da “Cooperação para o Desenvolvimento” deve considerar: i) como os profissionais de desenvolvimento estão posicionados e se posicionam em múltiplas categorias sociais, cada uma com relações específicas com estruturas de poder que afectam as experiências individuais de discriminação e privilégio; ii) que sentidos atribuem a “Cooperação para o Desenvolvimento” e como estes se posicionam dentro de uma ‘indústria’ assente em hierarquias de conhecimento e estereótipos em relação aos países do Sul, onde incidem a maioria das intervenções da Cooperação para o Desenvolvimento; e iii) em que medida os seus discursos e práticas individuais reproduzem, subvertem ou reconfiguram as desigualdades de poder inerentes à indústria da “Cooperação”.

 

Referências

Baaz, M. (2005), The Paternalism of Partnership: A Postcolonial Reading of Identity in Development Aid, London: Zed Books.

Caison G. e B. Vorman (2014) ‘The Logics and Logistics of Urban Progress: Contradictions and Conceptual Challenges of the Global North-South Divide’, The Global South, 8(2): 65-83.

Chandy L. e H. Kharas (2011) ‘Why can’t we just get along? The practical limits to international development cooperation’, Journal of International Development: the Journal of the Development Studies Association, 23 (5): 739-751.

Fechter, A. (2012) ‘The Personal and the Professional: Aid Workers’ Relationships and Values in the Development Process’, Third World Quarterly, 33(8): 1387-1404.

Fechter, A. e K. Walsh (2010) ‘Examining ‘Expatriate’ Continuities: Postcolonial Approaches to Mobile Professionals’, Journal of Ethnic and Migration Studies, 36(8): 1197-1210.

Hatzky, C. (2015) Cubans in Angola: South-South Cooperation and Transfer of Knowledge, 1976-1991, Madison: University of Wisconsin Press.

Heron, B. (2007) Desire for Development: Whiteness, Gender, and the Helping Imperative, Ontario: Wilfrid Laurier University Press.

Hühne, P. Meyer B. e Nunnenkamp P. (2014) ‘Who Benefits from Aid for Trade? Comparing the Effects on Recipient versus Donor Exports’, The Journal of Development Studies 50(9): 1275-1288.

Kothari, U. (2005) ‘Authority and Expertise: The Professionalisation of International Development and the Ordering of Dissent’, Antipode. 37(3): 425-446.

Levander, C. e W. Mignolo (2011) ‘Introduction: The Global South and World Dis/order’, The Global South, 5(1):1-11.

Milani, C. e J. Loureiro (2013), ‘International cooperation and development: analyzing the role of international agencies in Duque de Caxias (Rio de Janeiro), Cadernos EBAPE.BR, 11(2):234 -255

Miquel-Florensa, J. (2007) ‘Aid Effectiveness: A Comparison of Tied and Untied Aid’, Department of Economics Working Papers.

Mosse, D. (2005) Cultivating development: An Ethnography of Aid Policy and Practice, London: Pluto Press.

Peters, R. (2016) ‘Local in Practice: Professional Distinctions in Angolan Development Work’, American Anthropologist, 118(3): 495-507.

Powell M. e Seddon D. (1997) ‘NGOs & the Development Industry”, Review of African Political Economy, 24(71):3-10.

Ress, S. (2015) ‘Solidarity, History and Integration: A Qualitative Case Study of Brazilian South-South Cooperation in Higher Education’ Unpublished PhD thesis, University of Wisconsin- Madison.

Roth, S. (2015) ‘The Paradoxes of Aid Work: Passionate Professionals’, London: Routledge.

Taela, K. (2017), Identity and Agency in South-South Relations: Brazilian Development Workers and Mozambique’ Unpublished PhD thesis, University of Sussex.

Trefzer, A. J. Jackson, K. McKee e K. Dellinger (2014) ‘Introduction: The Global South and/in the Global North: Interdisciplinary Investigations’, The Global South 8(2):1-15.

Wagner D. (2003) ‘Aid and Trade – An Empirical Study’, Journal of Japanese and International Economies, 17(2), 153-173.

Yarrow, T. (2011), “Maintaining Independence: The Moral Ambiguities of Personal Relations among Ghanaian Development Workers”, in in Anne-Meike Fechter and Heather Hindman (eds.) Inside the Everyday Lives of Development Workers: the Challenges and Futures of Aidland, Kumarian Press, Virginia.

 

Notas

1. Utilizamos o termo “cooperação para o desenvolvimento” entre aspas para enfatizar a natureza política e controversa do termo que eclipsa as relações de assimetrias, hierárquicas e de dependência que tende a criar (Milani e Loureiro 2013). O termo está crivado de mitos e esconde as dificuldades que os vários atores tem em relacionar-se (Chandy e Kharas 2011). Entendemos “desenvolvimento” tanto como um ideal que as instituições e indivíduos procuram alcançar através da cooperação internacional, como uma indústria que compreende um conjunto de instituições, políticas e práticas (Crewe e Harrison 1998), por isso utilizamos os termos “indústria da cooperação” e “indústria do desenvolvimento” alternadamente. O uso do termo indústria é usado intencionalmente para visibilizar o fato de ser um empreendimento que tanto responde a demanda global como gera demanda, de acordo com os seus próprios interesses (Powel e Seddon 1997). A utilização do termo visa ainda problematizar a forma como a cooperação para o desenvolvimento é persistentemente apresentada como ‘sem fins lucrativos’, contrariando a evidência existente sobre as relações entre ajuda e comércio, os condicionalismos da ajuda e sobre a profissionalização da cooperação, que mostra como os países, instituições e indivíduos nela envolvidos beneficiam materialmente e financeiramente (Wagner 2003, Kothari 2005, Miquel-Florensa 2007, Fechter 2012, Hühne, Meyer e Nunnenkamp 2014, Roth 2015).

2. O Norte Global e o Sul Global reforçam-se mutuamente e podem coexistir no mesmo espaço geográfico (Mohanty 2003, Levander e Mignolo 2011). Trefzer, Jackson, Mackee e Dellinger apontam que o termo Sul Global permite-nos analisar as bolsas de pobreza, desigualdades de género e racismo pelo mundo afora – incluindo nas chamadas ‘nações ricas’ enquanto o ‘Norte Global’ permite-nos analisar as bolsas de riqueza, privilégio de género e racial – incluindo nas ‘chamadas nações pobres’ (2014:4).

3. O trabalho de Yarrow (2011) sobre as ambiguidades morais das relações pessoais de profissionais de desenvolvimento Ganenses a trabalhar no Gana constitui uma das excepções, que vai para além do binómio Norte-Sul.

4. O conceito de conhecimento autoritativo é usado em referência aos processos sociais de legitimação de conhecimento e aos diferentes níveis de autoridade que são conferidos às várias formas de conhecimento, conforme sublinha Jordan ‘o poder do conhecimento autoritativo não é porque é correto, mas sim porque conta (1997:56).’ Já Crewe e Harrison (1998) sublinham facto do conhecimento autoritativo ser geralmente ser baseado, mais na origem da pessoa do que no conhecimento em si.