Vozes de Nós nos rumores do mundo a cultura sistémica na transformação social

Orlando Garcia

Sociólogo, investigador e “engenheiro social”. Trabalha regularmente em planeamento social e na operacionalização de programas em rede e em parceria. Cofundador, Presidente da Mesa da AG e activista do Chapitô. Docente do Ensino Superior nas áreas da Intervenção Social. 40 anos de experiência em Cooperação para o Desenvolvimento com 37 missões realizadas (em todos os países da CPLP). Diversos livros, artigos e relatórios editados.

Pés na terra no Social. No social profundo, no social dos meandros. Todas as possíveis e quase-impossíveis valências da acção social e da promoção social.

“Vozes de Nós” é a designação de um blogue. Também é título de dois Manuais Pedagógicos com evidências. E também foi sendo adoptado para nomear uma rede de parcerias que tem vindo a protagonizar o movimento que aqui se encontra em foco. Um movimento cultural, como se procura aqui demonstrar. Há uma tese subjacente: a dimensão cultural é determinante para a incorporação de processos sociais transformadores.

Situado num campo agudo da intervenção nas exclusões sociais, o projeto / processo que deu origem a este movimento tem como designação oficial fundadora: “Meninos de Rua: inclusão e inserção”. Parceria constituída por 8 ONG’s / OSCs nacionais dos respetivos (8) países com historial e credenciais neste campo de intervenção – as exclusões precoces nas crianças e adolescentes no quadro dos Direitos da Criança. AMIC da Guiné-Bissau, ACRIDES de Cabo Verde, Fundação Novo Futuro de S. Tomé e Príncipe, Okutiuka de Angola, Meninos de Moçambique, Fórum Comunicação e
Juventude de Timor-Leste, CRIA do Brasil e a ACEP em Portugal como proponente e dispositivo de viabilizações. São agora 12 anos de movimento que não serão aqui tratados uma vez que este artigo pretende ser projectivo, analógico, ressonante.

Num número sobre Cultura pretende-se partir de uma experiência no activo (a parceria continua a mexer-se) para uma reflexividade mais projectiva acerca da imprescindibilidade da dimensão cultural em processos sociais transformadores. Num número anterior desta Revista (N.º 3) já argumentámos sobre a “inovação social”. Desta feita estamos a tratar de Ecologia (da mudança), ou seja, do jogo enculturação / aculturação propício às condições sistémicas para que a “inovação social” se incorpore nas práticas sociais. Não poderemos evitar ilustrações ancoradas na experiência concreta.

Este movimento é e sempre foi intrinsecamente cultural. A acção cultural como motor e “reservatório” da acção social. Nem poderia ser de outra forma. Como é que se poderia contrariar exclusões precoces e prescindir da produção de poder simbólico? Todos os parceiros co-protagonistas já desenvolviam e continuam a desenvolver práticas culturais sistemáticas nos seus modelos de intervenção. O movimento conjunto veio reforçar e ampliar essa dimensão.

Processo sistémico e inter-sistémico em que está em jogo uma gradual modelagem da historicidade lusófona neste campo da intervenção sobre as exclusões infantis e juvenis. As principais dinâmicas estão ancoradas no sistema organizacional – onde se situam e movimentam as agências protagonistas e onde se vão tramando as suas extensivas redes que proporcionam os acessos plurais aos sujeitos-destinatários. Mas o processo também é “pilotado” no sistema político-institucional – tem-se desenvolvido no quadro da CPLP, com todas as formalidades e procedimentos que isso implica – o que também se traduz na obrigação de praticar “advocacy”, de procurar influenciar as políticas sociais activas, os decisores e os procedimentos de viabilização das intervenções. É a Cultura Política que aqui está em jogo. Isto pretende ser válido para qualquer equivalente processo social transformador.

Neste caso, este caminho de gradual modelagem da historicidade neste campo dos “direitos efectivos das crianças”, que se encontra in progress, tem sido especialmente desafiante para todos os co-protagonistas, porque a sua natureza implica suportar ciclos e transições, porque as lógicas “praxiológicas” obrigam a ter duplas e triplas focagens, porque tem que ser socialmente útil nas escalas micro e no imediato e tem que ser enunciativo-negociador nas escalas macro no mediato, porque é animado por directrizes de inovação social, com metodologias de investigação-acção e com preferenciais recursos e práticas nos quadros da Acção Cultural e da Ação Comunicacional.

Também, neste caso, todos os parceiros envolvidos têm singulares lastros culturais independentemente do processo conjunto no “vozes de nós”. Já tinham, antes dos 12 anos, e continuaram a ter. No núcleo duro da rede estão oito “caldos culturais” distintos com o denominador-comum de actuarem no universo dos Direitos da Criança e das exclusões “agudas” de crianças e jovens. Nesses oito caldos encontra-se toda a panóplia das modalidades e expressões: todos desenvolvem trabalho comunitário com recursos, propostas e projetos culturais (artes plásticas, artes performativas, música, audiovisuais, oficinas de criatividade, etc.), num quadro mais extensivo que inclui a participação em rituais colectivos (como é o caso do Carnaval por exemplo), a organização de festivais e de eventos (da micro-escala à macro-escala), a manutenção de grupos de dança e de teatro, a disponibilização de estúdios e espaços com equipamentos básicos, a formação e o intercâmbio nas modalidades e metodologias expressivas…

 

Orlando Garcia, Cidade Cria, Salvador da Baía

 

A dimensão de prática artística e criativa associada à visibilidade e à acção comunicacional como estratégia de superação e de “trans-inserção” tem constituído um dos traços distintivos do “vozes de nós”

Nestes processos, que procuram transformações sistémicas, no terreno e nas estruturas, e portanto nas mediações, convém produzir “acontecimentos-padrão”, ouseja eventos de confluência de elevada densidade “cultural”. No caso do “vozes de nós” isso ocorreu a propósito da figura dos “arte-educadores” e à procura de um modelo de “arte-educação”. Trata-se da invenção de “engenharias”, em que, por via das dinâmicas inter-pessoais e da sucessão encadeada de situações e momentos com produção de conteúdos e de formato comunicacional, se torna possível construir “capital identitário” e entrar no jogo entre “capital social” e “capital cultural”, com a abertura das oportunidades de mobilidade social, com exploração de “zonas de incerteza” nos destinos (com as disposições a contrariarem as posições).

É preciso animar um movimento – de aposta na aquisição e circulação de capital cultural – que tem singularidades em cada país/sítio, e que tem que estar imiscuído e entranhado em toda a panóplia de modalidades de Acção Social e de Promoção Social que, neste caso, vão desde os acolhimentos, à manutenção de respostas sociais e de emergência e precariedade que as agudas realidades exigem (pobreza infantil, violências com tipologias diversas, trabalho infantil, tráfico de crianças, casamentos precoces forçados, práticas nefastas, abandonos e negligências, crianças e jovens em situação de sem-abrigo …). Estes elencos indesejáveis tornam indispensáveis as “magias das artes”, com as suas possibilidades de “reviravoltas” (mentais – na indução de outras “disposições” – “turning points”) e com as suas exigências de ação comunicacional, ou seja, impactos e ressonâncias com evidências. Para além de geradoras de identidade e de comunicabilidade, as artes (aplicadas) são excelentes recursos (endógenos) da advocacy que tem que ser insistente e multifacetada.

Neste tipo de processos, tem que se dar a máxima importância à visibilidade, quer ao nível das interacções comunitárias e das suas ressonâncias sociais e societais, quer no plano editorial e da comunicação social. Neste caso, têm sido organizadas diversas modalidades de formação-acção com artistas, especialistas e destinatários-mediadores e destinatários-sujeitos. Tem sido preciso viabilizar a emergência, a circulação e a ampliação das “vozes”, que também não podem deixar de ser as “imagens de nós”. Oficinas criativas, formação de animadores, exposições e exibições públicas e comunitárias, edição e distribuição de publicações, disponibilização digital de todos os recursos editados, dinamização de canais das redes sociais, sinergias com a comunicação social (jornais, rádio, tv), organização ou participação em eventos (festivais, feiras, desfiles,comemorações, cerimónias, campanhas, etc), sinergias nas redes sociais, ou seja têm que ser activadas múltiplas situações-oportunidades encadeadas que podem proporcionar a “produção expressiva” e o “protagonismo mensageiro”.

A dimensão de prática artística e criativa associada à visibilidade e à acção comunicacional como estratégia de superação e de “trans-inserção” tem constituído um dos traços distintivos do “vozes de nós”. Tudo se passa num universo “tramado” e num caminho que não quer ser “assistencialista”. É imperioso ser-se “cultural” em todas as frentes. A produção cultural tem que abranger os diversos planos e dimensões, desde as práticas incorporadas no “dia-a-dia” aos modelos conceptuais e metodológicos já no plano da historicidade.

Neste tipo de projectos e intervenções, há que reivindicar condições extraordinárias (e, em certos casos, até excêntricas) para qualificar os processos de socialização do que se poderá chamar de “cidadãos especiais”, aqueles que estão a ser sujeitos de uma socialização disruptiva e/ou atribulada, decorrente de discrepâncias dos sistemas e sub-sistemas que era suposto estarem a socializar “normalmente”. Não há outra hipótese senão contrariar. Essa “contra-cultura” que tem que se construir não se consegue sem “caldo afetivo-cultural” e sem “expressões enunciativas de identidade”. É a seiva para a vontade e persistência na transformação.

Accionar e alimentar a criatividade artística na forma de um jogo puramente construtivo. Esse jogo pode ser mais ou menos lúdico e/ou mais ou menos prático-comunicativo. O que está em jogo é o princípio da construtividade meta-operativa. O processo artístico é um processo poético e desencadeia a intensificação e ambiguação semântica. Estas dinâmicas pessoais, dentro de redes colectivas de interação, alimentam o intelecto e animam os conceitos com a imaginação.

Num caso como este, têm que estar em equação os “segredos” actuais das dinâmicas de constituição e incorporação de um “sentido prático” pertinente, cívicamente conveniente e, de alguma forma, coerente – no quadro das “sub-culturas” que estão no cerne das realidades enfrentadas. Como remar contra a maré? São enormes as responsabilidades das agências de socialização – entidades que assumem responsabilidades públicas ao nível das respostas a necessidades qualitativas – que protagonizam estas missões, queconsideram imperativas. Trata-se de viabilizar e efectivar intervenções contínuas e encadeadas sobre as “redes intersticiais” do tecido social e, em simultâneo, criar caminhos e condições para a inclusão (crítica e criativa).

Orlando Garcia, Cidade Cria, Salvador da Baía

Trata-se da invenção de “engenharias”, em que, por via das dinâmicas inter-pessoais e da sucessão encadeada de situações e momentos com produção de conteúdos e de formato comunicacional, se torna possível construir “capital identitário”.

Para além dos enredos socioculturais, os projectos sociais transformadores também precisam de se distinguir pelo «trabalho da imaginação», segundo Appadurai, pelo facto de a imaginação se ter transformado num facto social, colectivo, e fazer parte da vida quotidiana dos cidadãos comuns. A imaginação pós-electrónica, combinada com a desterritorialização, torna possível “a criação de universos simbólicos transnacionais, comunidades de sentimento, identidades prospectivas, partilhas de gostos, prazeres e aspirações, em suma, o que Appadurai chama “esferas públicas diaspóricas”.

Citando Carlos Lopes e George Kararach, o “vozes de nós” sempre esteve na senda da aposta na “inovação disruptiva” e nem podia ter sido de outra forma nesse enfrentamento de uma das mais agudas e inadmissíveis “misérias do mundo” como são as exclusões precoces infantis e juvenis. Só com todos os instrumentos disponíveis, sobretudo os mais transformadores, como são os do “capital cultural”. E também se pode rever nalgumas das condições que esses autores traçam para a mudança estrutural (em África; e neste caso é tudo “africano”): “revitalização das práticas e narrativas de renovação”, ”criar novas narrativas e amplificar as histórias de sucesso”, “papel das instituições e do Estado” por via da “criação de consensos”, “ambiente de melhor aquisição de competências e a recomposição de competências”. Isto não pode deixar de ser válido para qualquer equivalente processo social transformador.

Pés na terra no Social. No social profundo, no social dos meandros. Todas as possíveis e quase-impossíveis valências da acção social e da promoção social. Persistente e reflectida acção cívica e acção política. Mas o “vozes de nós” aparece aqui como ilustração do primado da dimensão cultural num projecto que se pretenda de transformação social, desde a contínua acção cultural “rasteira” (a animação e a sequência de iniciativas no terreno “intersticial”) até à persistência e insistência nas reciclagens da Cultura Política. Pode-se transformar, sistemicamente, sem ser assim?